Em Debate no dia 1º de setembro no
CEJUS-Centro de Estudos Jurídicos e Sociais José Fernandes de Andrade, em João Pessoa-PB, sobre o livro
"O Ano Que Ficou - 1968 Memórias Afetivas", o historiador José Octávio de Arruda Mello iniciou sua brilhante intervenção com a leitura de um sólido texto, cuja primeira metade trata de reconstituir o processo político que desembocou no golpe militar de 1964. Só na segunda metade dessa abordagem histórica, José Octávio foca diretamente o livro referido, e assim o movimento estudantil de 1968. Publicamos aqui esta parte. Na íntegra, o texto deverá ser publicado em revistas especializadas. O excelente artigo é acompanhado de extensa bibliografia que muito o corrobora, mas que aqui também omitimos.
DINÂMICA ESTUDANTIL E ANÁLISE CRÍTICA EM UM LIVRO DE FORÇA
José Octávio de ARRUDA MELLO
1.4. O problema da
historiografia estudantil – É aí que nos deparamos com o tema do movimento
estudantil presente a esse livro de força que é O Ano Que Ficou – 1968 Memórias Afetivas, organizado por Washington
Rocha e Telma Dias Fernandes.
Não é verdade, porém, que, só agora, repito, com a sólida
construção de Washington e Telma, a temática estudantil se haja incorporado à
historiografia paraibana.
Além de mim, com três ou quatro livros, e Waldir Porfírio,
com outros tantos, diversos autores como Cláudio Lopes Rodrigues, Gilbergues Santos Soares, Maria José Teixeira L. Gomes, Rômulo Araújo Lima, Monique
Citadino, Gilvan de Brito e Ruy Leitão atentaram para a presença estudantil,
antes e depois de 64.
Essa participação foi conceituada pelo cientista político
Décio Saez para quem os estudantes agiam como força de substituição, o que ajuda a compreender 1968. Como os
partidos políticos estivessem amordaçados, restou à oposição manifestar-se
através do segmento estudantil e cultural. Esses, aliás, em sintonia com o
vento de maio que, a partir da França, soprava na Europa.
Falei acima que não foram poucos os escritores paraibanos que
se debruçaram sobre a mobilização estudantil. Qual, porém, a diferença desses
para os dezessete responsáveis por O Ano
Que Ficou? Simplesmente a seguinte: enquanto os componentes da nova
historiografia consideram o movimento estudantil como parcela de contexto mais
amplo, de implicações político-militares, econômico-sociais, religiosas,
internacionais, jornalísticas e culturais, os responsáveis por O Ano Que Ficou optaram por outro viés.
Seu enfoque é quase exclusivamente estudantil; o que
significa visão, além de corporativa, frutífera e original. Isso porque a
perspectiva setorial dos dezessete autores do livro que analiso é tão manifesto
que, onde o religioso e o cultural despontam, é como projeção do colegial e
universitário. Noutras palavras, o foco é sempre a dinâmica estudantil, em si
mesma, impulsionada pelos Liceu e Colégio Estadual do Roger, com apoio dos
rapazes e moças da Faculdade de Filosofia da UFPB.
1.5. Uma experiência
anarquista? Constante em O Ano Que
Ficou é a comparação com com 1968, o
Ano que não Terminou (1968), de Zuenir Ventura.
Cabe, porém, uma diferença. Enquanto Zuenir, atento para o caso
Márcio Moreira Alves e Guerra do Vietnam que, em 1968, dominaram a mídia,
sustenta a tese de que os jovens que se batiam pelas mudanças políticas e
econômicas do capitalismo terminaram alcançando modificações de comportamento
existencial, O Ano Que Ficou
sinaliza noutra direção.
Esta consiste em que o movimento estudantil de 68 abriu
caminho para a luta armada. Tal se torna claríssimo no comportamento de Emilson
Ribeiro – tendente ao marighelianismo -, José Calistrato, liderando coluna
guerrilheira no Ceará, e José Ronald Farias, como partidário da ocupação de
prédios públicos em João Pessoa. Bem como Agamenon Travassos Sarinho que
descambou para o PCdoB, com agrupamento responsável pela guerrilha do Araguaia.
Em nosso modo de ver, tudo se verificou porque,
substancialmente, o movimento estudantil paraibano de 68, embora assim
rotulado, não era marxista, e como tal comunista, mas anarquista, o que se
constata na filiação ideológica dos autores de O Ano Que Ficou – 1968 Memórias Afetivas. Nenhum deles pertencia ao
PCB, o velho ‘pecezão”, que, aliás, desenganado da experiência de 35,
desautorizava a solução militarista.
Dentro desse quadro, o movimento estudantil paraibano de 68,
mais próximo à Comuna de Paris de de 1871 que ao leninismo bolchevique de 1917,
recaiu no proudhonismo, e se não no blanquismo, o que explica a orientação das
entidades que o empalmaram – AP, MR-8, PCBR, POLOP, PCdoB, POC e assemelhados,
como embrião das que vieram depois – ALN, VPR, VAR-Palmares, PCR, COLINA,MOLIPO
e Grupo Primavera. Muitos desses últimos constituindo apenas meros Grupos
Táticos Armados.
Eis porque, embora sem aderir à luta armada, da qual somente
se aproximou no curioso acampamento da praia da Penha, encurralado pela maré, o
movimento estudantil de 68 na Paraíba simbolizou-se no porralouquismo (a
expressão é dele mesmo) de Washington Rocha que, sem assistir a uma só aula,
estava na melhor tradição ácrata, contra tudo e todos – escola, família,
professores, religião, política convencional. Mas sempre revelando energia
digna de nota.
1.6. Isolamento e luta
armada – Nessa singularidade radicalizante do movimento estudantil de 68,
sua força e também sua fraqueza.
Permeados de extremismo que dispensava os potenciais aliados
como os que se opunham à Guerra do Vietnam e defendiam o mandato de Márcio
Moreira Alves, os colegiais e universitários paraibanos de 1968 – sem embargo
de sua audaciosa bravura – isolaram-se, o que explica o rápido refluxo da
dinâmica contestatória, a partir de outubro 68.
Destarte, quando, em dezembro, sobreveio o AI/5, o campo
estava livre para ele.
Ainda assim, a efervescência estudantil de 68, que O Ano Que Ficou tão bem ressuscita,
deve ser credora de nossa admiração. Mesmo os que empunharam armas, ainda que
politicamente equivocados, não devem ser execrados. Impõe-se o respeito, aos
que procederam por idealismo, sacrificando, não raro, as próprias vidas.
Também não creio que o movimento estudantil deva ser
malsinado por se revelar favorável a outra ditadura – a do proletariado, de
feição leninista. Entendo que, ao contrário dos ativistas, postados na cúpula,
a grande massa revelava-se pelas liberdades individuais, oposta à rigidez da
ditadura castrense que vigorava no país.
Em O Ano Que Ficou
tal se evidencia nas felizes colocações de Guy Joseph, “contrário a qualquer
ditadura, fosse de direita ou de esquerda”, Silvino Espínola, cujo
individualismo o levava a discordar das decisões coletivas, e, principalmente,
José Ronald Farias. Para este – sigamos suas palavras:
“Poucos tinham certeza de que o caminho certo era o da luta
armada. Agrande divisão era entre leninistas, estalinistas e trotskistas, de um
lado, e social-democratas, que defendiam um Estado de bem estar social
democrático, em lugar da ditadura do proletariado, de outro”.
1.7. Algumas passagens
e colocações finais – Fora daí, algumas passagens de O Ano Que Ficou – 1968 Memórias Afetivas, são dignas de registro.
Entre essas, a da escritora Maria José Limeira, arrebatando
Washington Rocha das garras da polícia, e a de Everaldo Júnior, desafiando o
delegado Emílio Romano, a quem identificara como homem de confiança de Felinto
Muller em 1937.
Já no plano metodológico, chamaram-me atenção os depoimentos
de José Nilton e Eldson Ferreira
Nilton que, como folclorista, sentiu na pele a intolerância da
direção da Faculdade de Filosofia, oferece a suas palavras a feição do
cotidiano da nova História para situar o movimento estudantil “em clima de
festa”.
Por seu turno, Eldson, seguindo os passos do sociólogo
francês Jean Blondel, recusa-se a dar nome aos personagens de que se ocupa. Em
relação a seu dramático depoimento há apenas uma observação a fazer.
Em programa de emissora local, por sinal fechada pouco
depois, o “radialista famoso” a que se refere, não o tachou de comunista, mesmo
porque o aludido programa, simpatizante do movimento estudantil, não recorria a
essa linguagem. O que se publicou foi a vinculação d Eldson à AP (Ação
Popular), o que não o desmerecia e, passados tantos anos, ainda pode ser
contestado.