Neste 1º de abril, em que escrevo, continuam a ocorrer pelo Brasil afora atos, falas e manifestações de diversos tipos contando a história e fazendo lembrar os crimes da ditadura militar implantada com o golpe de 1964: perseguições, prisões, torturas e assassinatos.
Eu, que, em João Pessoa-PB, estive na linha de frente das lutas estudantis em 1968, fui duramente perseguido, preso e torturado. Não fui morto, não sou Brás Cubas, não escrevo de Além-túmulo. Estou vivo, e vivo estando, pretendo usufruir por ainda longo tempo as benesses daquilo que ajudei a conquistar: a Liberdade e a Democracia. Pretendo que meus filhos e netos usufruam essas conquistas, que as aprofundem e elevem. Além de líder estudantil, fui membro de uma organização revolucionária armada, o PCBR. Não foi como tal que lutei por Democracia, foi depois, na luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, cuja vitória abriu o caminho da redemocratização.
Do ponto de vista democrático, a reconstituição histórica, a busca das mais escondidas verdades do passado, é necessária à construção do futuro, com a preservação das conquistas do longo percurso. O cultivo da verdade é uma das condições de fortalecimento da Democracia, que é um regime sedimentado sobre complexas pactuações; e os pactos feitos com o cimento da mentira não se sustentam.
Pois, é com espanto que percebo a insistência de uns quantos agrupamentos e setores de esquerda em procurar fazer a reconstituição do passado histórico através da mentira e da mistificação.
É necessário desnudar e execrar os crimes da ditadura, como vem sendo feito desde há bastante tempo, e ainda mais agora. Para isso sobram verdades, sendo as mentiras despiciendas. Quais são essas mentiras e por que as usam?
Por forma direta ou por omissão, pretende-se inculcar nas mentalidades que apenas a ditadura militar cometeu crimes, que os grupos armados que a enfrentaram não cometeram crimes. Isso é mentira: a esquerda armada cometeu crimes de terrorismo, inclusive aquele asqueroso crime de terrorismo contra os próprios companheiros, que foi o assassinato chamado de "justiçamento". Pretende-se ainda fazer valer a versão de que tais grupos armados lutavam por democracia. Isso é mentira: os grupos da esquerda armada proclamavam-se bolchevistas e, coerentemente, agiam de acordo com a doutrina marxista-leninista, que postula a "ditadura revolucionária do proletariado" como etapa imprescindível para emancipação definitiva dos oprimidos (essa postulação é uma cretinice teórica, mas é um dogma da igreja marxista-leninista). A única organização marxista relevante que, naquela época, objetivamente, lutou por democracia foi o Partido Comunista, o Partidão velho de guerra, que rejeitou o caminho da luta armada.
Tudo isso é tão certo e está tão solidamente registrado e estabelecido que estarrece a permanência na mentira. Então, por quê?
Um dos objetivos das referidas mentiras políticas é a consumação de uma estupidez política: a revisão da Lei da Anistia. E qual o objetivo da revisão da Lei da Anistia? a revanche, a recuperação da guerra revolucionária, estando agora a esquerda em condições de vantagem.
Vejam; do ponto de vista do marxismo-revolucionário, essa é uma boa estratégia. Do ponto de vista da Democracia, é um caminho desastroso.
Tratei disso extensamente no meu livro -
Sobre "anos de chumbo" e Anistia - , publicado em 2012 e a cada dia mais atual. É preciso voltar sempre ao assunto porque a campanha estúpida pela revisão da Lei da Anistia prossegue; e, por estúpida que seja, poderá prosperar se os revanchistas ficarem sempre sem resposta.
Neste ponto, remeto os interessados ao meu livro (disponível em www.portal100fronteiras.com.br) e vou à análise da pesquisa citada no texto, para demonstrar como ela comprova a estupidez da referida campanha.
Trata-se da Pesquisa Datafolha publicada ontem (31/03/2014) em reportagem na Folha de São Paulo. A pesquisa foi bem formulada, mas a reportagem foi, a meu ver, desonesta e até escandalosamente desonesta, pois tentou desdizer por arenga política o que os números escancaradamente diziam. Vejamos:
Revisão da Leia da Anistia:
46% a favor; 37% contra.
Para a pergunta mais específica:
você é a favor ou contra a punição de pessoas que torturaram presos políticos durante a ditadura? 46% a favor - 41% contra.
Até aí vai bem para os revanchistas. Porém vão aparecer números tão desagradáveis aos revanchistas que o jornalista se achou na obrigação de invalidá-los previamente, com um discurso engajado, falacioso e seboso.Vejam:
"O Datafolha também perguntou se é o caso de reexaminar atentados contra o governo cometidos por militantes opositores da ditadura.
A proposta não tem força política ou jurídica. Autores de atentados já foram julgados e penalizados com prisões, conforme legislação da época. E muitos sofreram punições não previstas na lei, como tortura e morte.
Apesar disso, a ideia costuma ser repetida por alguns defensores da ditadura em resposta aos que pedem punição aos torturadores.
Resultado: 54% responderam que sim, esses casos merecem reexame. Quando o instituto perguntou se todos deveriam ser julgados hoje, torturadores e ex-militantes, 80% apoiaram".
Como se pode ver, o jornalista revanchista, fazendo campanha pró-revisão na sua reportagem, quer que a opinião de 54% dos brasileiros não tenha força política nem jurídica, enquanto a opinião de 46% sobre a mesma questão, mas do lado que lhe agrada, terá. Essa opinião do jornalista, flagrantemente tendenciosa e imbecil, tenta se sustentar no argumento falacioso de que
"autores de atentados já foram julgados e penalizados com prisões". Alguns foram, nem todos foram. E a tortura e morte sofridas por uns, não absolve os crimes de outros. Eis as falácias. A seboseira está em insinuar que os que são contra a revisão da Lei da Anistia são
"defensores da ditadura". Alguns serão, porém, a maioria dos que têm expressamente rejeitado a revisão da Lei da Anistia são inimigos viscerais da ditadura, muitos a enfrentaram, muitos foram perseguidos, presos e torturados por essa ditadura. Eu estou em todos esses casos. Aliás, passei a detestar todas as ditaduras. Quando líder estudantil, subia em qualquer pedaço de muro para bradar contra a ditadura militar:
"DITADURA DE MERDA!". Hoje, para mim, não só a ditadura militar foi de merda; para mim, todas as ditaduras são ditaduras de merda, inclusive as ditaduras de merda bolchevistas com que sonham os marxistas-leninistas revanchistas.
Voltemos aos números da pesquisa. Por eles, mas não pela opinião militante do jornalista, a revisão da Lei da Anistia para efeito de punição seletiva não passará pelo crivo da opinião pública. E é muito difícil que essa despropositada revisão passe pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal sem passar pelo apoio popular.
Ademais, se esta Lei da Anistia, tão benéfica, que produziu os melhores frutos, inclusive a democracia em que vivemos, for revisada, pouco haverá de atingir os criminosos da ditadura, pois quase todos (ou todos) estarão mortos. Dado que a extrema juventude (alguns, como eu, adolescentes) foi característica dos militantes da esquerda revolucionária, seriam atingidos antes alguns dos jovens daqueles distantes "anos de chumbo". Calculem aí o tempo necessário para a revisão da Lei ser aprovada no Congresso, ser levada ao STF e aprovada (ao arrepio da letra da Constituição, que veda a retroatividade de leis gravosas), serem abertos os devidos processos legais, concluídos os julgamentos, feitas as dosimetrias, apreciados os embargos (inclusive os infringentes), para se chegar às sentenças definitivas.
Nós outros, libertários e democratas, defensores da Leia da Anistia, queremos a Verdade, a buscamos e a proclamamos; e queremos continuar a construção democrática pelo caminho da PAZ. Os revanchistas, postuladores da revisão da Lei da Anistia para efeito de punição unilateral retroativa, usam um pedaço da verdade para construir uma mentira capaz de enganar os ingênuos e arrastá-los para o caminho da guerra.
Não será fácil, não creio que consigam. Não, se não for permitido aos revanchistas ficarem falando sozinhos. Da minha parte, não permitirei.