Blog Rocha 100

No princípio, criou Deus os céus e a Terra”. Ótima frase para um Blog que navegará 100 fronteiras: dos céus metafísicos à “rude matéria” terrestre. “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. Pois, somos também deuses, e criadores. Podemos, principalmente, criar a nossa própria vida, com autonomia: isto se chama Liberdade. Vida e Liberdade são de Deus. Mas, quem é “Deus”? Devotos hebreus muito antigos, referiam-se a Ele apenas por perífrases de perífrases. Para Anselmo de Bec, Ele é “O Ser do qual não se pode pensar nada maior”. Rudolf Otto, diante da dificuldade de conceituá-Lo, o fez precisamente por essa dificuldade; chamou-O “das Ganz Andere” (o Totalmente Outro). Há um sem número de conceitos de Deus. Porém, o que mais soube ao meu coração foi este: “O bem que sentimos intimamente, que intuímos e que nos faz sofrer toda vez que nos afastamos dele”. É de uma jovem filósofa: Catarina Rochamonte.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Na África do Sul: a ditadura do apartheid, Mandela e a Anistia Ubuntu - No Brasil: o golpe de 1964, a ditadura militar e a Anistia Ampla, Geral e Irrestrita

Na África do Sul, depois de 27 anos encarcerado, isolado, espezinhado, maltratado, torturado; depois de 27 anos Nelson Mandela saiu da prisão para criar uma Nação. Para que naquele território devastado pela injustiça e indignidade do apartheid pudesse surgir uma Nação era preciso escolher entre dois excludentes caminhos: a) o confronto entre os oprimidos (a maioria negra precariamente armada) e os opressores (a minoria branca, que possuía um exército poderoso, treinado para a guerra e acostumado à guerra de repressão); b) a reconciliação.

O primeiro caminho vislumbrava-se terrível; o segundo caminho vislumbrava-se impossível. Pois, Nelson Mandela comandou a realização do caminho impossível. Hoje, quando o mundo chora a sua morte e enaltece o seu exemplo, não escuto uma única voz que o venha recriminar por ter escolhido o caminho da reconciliação e  não o do confronto.

No Brasil, em 1964, um golpe de Estado deu início a uma ditadura militar que perseguiu milhares de brasileiros, que prendeu, torturou e assassinou centenas de brasileiros. Contra essa ditadura ergueram-se rebeldes desarmados e rebeldes armados. O confronto armado foi duro, pelo que veio a ser o seu período apelidado de "anos de chumbo". Sendo que, após sufocada a resistência armada - com os resistentes presos, exilados ou mortos -, gradativamente avolumou-se o clamor popular pelo retorno democrático, dois caminhos apenas se abriam aos defensores da democracia: a) o confronto dos populares desarmados com as poderosas forças armadas da ditadura, retomando-se o confronto sangrento dos "anos de chumbo" em escala multiplicada; b) a reconciliação.

O primeiro caminho vislumbrava-se terrível; o segundo caminho vislumbrava-se possível e lógico, visto que ao avanço do clamor popular por democracia correspondia um refluxo da ditadura pelo processo chamado de  "abertura lenta e gradual'. Os líderes oposicionistas no Congresso e, principalmente, o povo nas ruas decidiram pelo caminho da reconciliação.

Por todos os parâmetros, a reconciliação como caminho de superação da  ditadura militar no Brasil apresentou-se menos problemática do que viria a apresentar-se a reconciliação na África do Sul como superação da ditadura do apartheid.

Pois, se hoje não mais se ouvem vozes contra a política de reconciliação  de Mandela na África do Sul, erguem-se no Brasil vozes contra a política de reconciliação que o povo brasileiro escolheu para superar  a ditadura militar e abrir o processo de reconstrução democrática. Vozes que clamam pelo retorno ao passado, vozes que querem recuperar um confronto superado há mais de três décadas.

A proposta da revisão da Lei de Anistia para punir os crimes dos agentes da ditadura contém elementos de Justiça, mas estes estão embaçados pelo propósito da seletividade. Apenas seriam punidos estes crimes de terrorismo do Estado ditatorial, mas não seriam punidos os crimes de terrorismo revolucionário. Estes, aliás, não serão sequer investigados pela Comissão Nacional da Verdade.

O que, principalmente, falta à proposta de revisão da Lei de Anistia é visão histórica e tirocínio político. Uma coisa e outra, os propagandistas de boa fé da revisão poderiam aprender com Nelson Mandela. Os propagandistas de má-fé nunca querem aprender porque sempre pretendem que suas verdades sejam absolutas.

Mais de uma década após a Lei de Anistia de 1979 ter aberto o caminho da redemocratização no Brasil, foi instalada na África do Sul, em 1995, por determinação do presidente Nelson Mandela e gerenciamento direto do arcebispo Desmond Tutu, a Comissão de Verdade e Reconciliação, que promoveu ampla anistia e nenhuma punição. Essa esplêndida construção política, sem a qual a reconstrução nacional não teria sido possível, chamou-se Anistia Ubuntu.

É possível, e mesmo provável, que a Lei de Anistia brasileira de 1979 tenha sido fonte de aprendizado para os democratas da África de Sul em 1995. Já os que defendem a revisão da Lei de Anistia brasileira para promover justiça retroativa seletiva, não aprenderam com as lições do próprio Brasil nem aprenderam com as lições da África do Sul, de Mandela e do bispo Tutu.

A esquerda revolucionária e revanchista brasileira, que quer retornar à guerra dos "anos de chumbo", argumenta que o exemplo da punição dos torturadores e assassinos da ditadura é necessário, embora não se disponha sequer a fazer autocrítica dos crimes que cometeu; certamente, porque considera que tais crimes, em sendo seus, não são crimes. A esquerda revolucionária arvorou-se a todos os direitos, como muito bem disse Norberto Bobbio: "Inclusive o direito de impunidade que foi sempre a prerrogativa dos soberanos absolutos e dos déspotas".

Eu tenho defendido a Lei da Anistia de 1979 no Brasil. Eu lutei por essa Lei. Lutei por essa Lei junto com milhões de brasileiros. Clamamos pelas ruas e praças de todo o Brasil por Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Na minha cidade, comandei essa luta, na condição de presidente do Comitê Brasileiro de Anistia/secção João Pessoa.

Os propagandistas da revisão escoram-se em verdades inquestionáveis para enfiar na mente dos incautos mentiras insustentáveis.
Eis as verdades: a) a ditadura militar perseguiu, prendeu, torturou e assassinou; b) a esquerda revolucionária combateu a ditadura militar.

Eis as mentiras: a) apenas a ditadura militar cometeu crimes; b) a esquerda revolucionária lutava pela democracia.

Desgraçadamente, a esquerda revolucionária cometeu crimes de terrorismo, com vitimas fatais. Cometeu, inclusive, crimes de "justiçamento", que é o torpe assassinato dos próprios companheiros. A esquerda revolucionária marxista-leninista não fez a luta armada pela democracia, mas para estabelecer a "ditadura revolucionária do proletariado". Isso era ponto de doutrina. A única organização marxista relevante que fez a luta, pacífica, pela democracia, foi o PCB, o Partidão velho de guerra.

A democracia brasileira tem uma agenda difícil para consolidar os direitos de liberdade e fazer avançar os direitos de igualdade. Sendo assim, é lastimável ver que democratas sinceros sejam arrastados de volta ao passado por bolchevistas audaciosos que buscam uma nova oportunidade de confronto revolucionário.

Os marxistas-leninistas têm todo direito de propor a revolução bolchevique, mas é um pouco demais que o façam em nome da democracia cuja destruição é seu primeiro objetivo. E é também um pouco demais que existam democratas sinceros ingênuos ao ponto de se deixarem engabelar por tal artifício.

Os democratas sinceros que aprendam com a Anistia Ubuntu, com o bispo Tutu e com Mandela. Vejam as lições que aqui transcrevo, como singela homenagem ao Madiba, que enfrentou a ditadura do apartheid pela luta armada, mas depois chegou ao entendimento de que o caminho para construir a nova Nação teria de ser o caminho da reconciliação.

Sobre a Anistia Ubuntu - do excelente ensaio de Simone Martins Rodrigues Pinto, Justiça transicional na África do Sul: restaurando o passado, construindo o futuro (www.scielo.br):

"Em 1995, quando a África do Sul pós-apartheid estabeleceu a Comissão da Verdade e Reconciliação, recebeu duras críticas dos ativistas ocidentais por oferecer anistia aos agentes da opressão. Todavia, os procedimentos foram baseados na ideia de justiça restaurativa e não retributiva. Apesar da anistia, o reconhecimento da verdade e a rejeição social dos atos cometidos funcionaram como um processo de reprovação moral. O arcebispo africano Desmond Tutu, um dos maiores defensores das comissões de verdade e justiça, ressaltou que esta visão é baseada não só em ideias cristãs do perdão para aqueles que reconhecem seus erros como também no conceito indígena africano de ubuntu";

"Para ele (Tutu), um justiça nos moldes de Nuremberg não seria possível na África do Sul, porque poria em risco a transição pacífica e negociada. Nenhum lado poderia impor justiça de vencedores, pois nenhum lado teve vitória definitiva: 'Quando os aliados podiam fazer suas malas e voltar para casa depois de Nuremberg, nós da África do Sul temos de conviver uns com os outros'".

Palavras de Nelson Mandela:

"Precisamos lutar continuamente para derrotar esse traço primitivo de glorificação das armas";

"Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar";

"O ressentimento é como beber veneno e esperar que ele mate seus inimigos";

"Pessoas corajosas não têm medo de perdoar em prol da paz"; 

"Com frequência, revolucionários do passado sucumbiram à ganância e acabaram sendo dominados pela inclinação de desviar recursos públicos para o enriquecimento pessoal. Ao acumular vasta riqueza pessoal e ao trair os objetivos que os tornaram  famosos, eles virtualmente desertaram do povo e se juntaram aos antigos opressores, que enriqueceram impiedosamente roubando dos mais pobres dos pobres";

Durante a minha vida inteira eu me dediquei a lutar pelo povo africano. Eu lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Eu celebrei o ideal da democracia e da sociedade livre, que todas as pessoas vivam em harmonia e com oportunidades iguais. Isso é um ideal que eu espero viver para conseguir. Mas, por Deus, também um ideal pelo qual eu estou preparado para morrer".

"Sempre parece impossível até que seja feito";

"Perdoem. Mas não esqueçam!".



3 comentários:

  1. Revisão da lei da anistia é olhar pra trás. A democracia precisa olhar pra frente.

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  2. A verdade será sempre bem vinda. Mas, para a guerra dos anos de chumbo no Brasil, o tempo das punições passou faz muito tempo.

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  3. Hoje foram concluídos os relatórios da Comissão Nacional da Verdade. O documento solicita a revisão da lei da anistia e muitas pessoas aderem a esse apelo. Lembro-me que petistas mau informados fizeram postagens horríveis na época da campanha presidencial acusando Marian Silva de, agora, defender torturadores, pois que ela era contra a revisão da Lei da Anistia. Esqueceram-se os idiotas que a própria Dilma também se posicionara contra.

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